domingo, 25 de março de 2012

Paisagem e cidade Anotações.1



Quem nos fará ver a felicidade ?
Quem nos dará a conhecer o bem?
Salmos 4,6
Anotações.1
Como toda invenção humana, a paisagem, isto e’, a forma artificial do entorno material, econômico e cultural de uma sociedade, produzida pelo trabalho, imposta pelo poder, apropriada e compreendida coletivamente, através de uma memória compartilhada, se transforma, real e simbolicamente, com o tempo histórico e as transformações sociais e políticas, mantendo uma certa invariância, um paradigma inteligível, “um recorte claro na informe continuidade da experiência sensível”. 

Uma cidade confronta, em suas formas, no mesmo espaço geográfico, épocas diferentes, oferecendo aos olhares diversos uma história sedimentada de comportamentos, gostos e formas culturais, suscitando paixões complexas em um espaço de deslocamentos, aproximações e distanciamentos, e ao mesmo tempo, conforme Alain Badiou “combina uma unidade orgânica com o caráter sempre reconhecível de sua forma especifica” .
A natureza transformada e o meio urbano, construção material e suas representações imateriais, de certa maneira, são ambos, artifícios culturais, elaborados, produzidos e apropriados de acordo com as formas dominantes da produção e as legitimações majoritárias em cada momento histórico, correspondendo as suas descrições e representações simbólicas, de pertencimento e vivencias individuais e sociais dos lugares, territórios e espaços sociais, ‘as produzidas pelas classes sociais ou aos setores hegemônicos em cada período, mas também como a arte, diz André Malraux, “não é uma dependência dos povos do efêmero, de suas casas e de seus móveis, mas da verdade que eles criaram um após os outros. A arte não depende do túmulo, mas depende do eterno” .
Assim, para cada período histórico, a paisagem, natural e construída, se apresenta em formatos diferentes, é enquadrada em molduras variadas, reconhecida ou negada, não vista ou percebida, preservada ou destruída, os seus valores de permanência e perdas ganhando e perdendo importâncias diante das inúmeras possibilidades de leitura e posicionamento pessoal ou de grupo, em suas múltiplas escolhas de pontos de vistas e perspectivas, mas também é o que permanece, é aquilo em qual permanecemos, não é somente o meio, o ambiente das coisas e dos corpos onde vivemos e falamos, é também o arrebatar da verdade que nos requer, no acontecimento singular, que nos convoca a participar.
O mar e as praias que até o século XVIII, em todo o mundo, eram vistas como os lugares do risco, do mal, quando, no litoral, com o olhar perdido diante do ilimitado, repletos estavam os oceanos com seus monstros e fantasmas, passam a serem prescritos, suas águas, suas areias, sol e viagens como terapias indicadas para as doenças de todo tipo, principalmente as de origem nervosas e como adequados espaços de recreio, lazer e esportes. 
Da mesma forma, as elevadas montanhas, suas escarpas e abruptos cortes, seus sombrios vales e picos, antigos e primitivos lugares onde se escondiam mistérios e dores, passam a ser, a partir desta época, os destinos dos aristocratas ingleses em busca de ilustração, onde o espírito racional se eleva diante do maravilhoso, do inefável, do sublime, onde entre o tipo e o caso especifico, podemos criar, e, portanto podemos pensar o ponto que ali permanece indiscernível, escreve Virgilio, “quando chega o abrupto das montanhas, ali onde cessam todos os caminhos”, e quando ”o céu está invadido por um surdo estrepito e as torrentes são uma cavalgada desde o alto dos picos”. 
Aqui no Brasil, as cerradas florestas tropicais, que assustavam e amedrontavam os viajantes pioneiros, passam a serem vistas e admiradas mais recentemente como locais da beleza, da vida intensa e diversificada, da sede original da natureza bela e inculta. Onde o esforço do imigrante reconhecia o adversário a ser domado e recortado pela faina do trabalho para constituir o plantio e a domesticação da paisagem, reconhecemos agora o inefável que se articula na ordem bruta do natural, a ser desvendado, em camadas, pela experiência sensível e pela ciência.  
Também as cidades de origem secular, como Roma, abandonadas, após a queda do império, desfeitas as suas ruas e edifícios, por séculos e gerações, em outro instante, a partir do romantismo nacionalista do século XIX, são reabilitadas, restauradas e onde as ruínas se acumularam, novos viajantes, turistas, se deslumbram com as riquezas e filigranas dos seus desenhos antigos, com as belezas imemoriais das pedras, palácios e estatuas desenterradas de seus túmulos.
Mesmo em cidades de história recente, como as cidades brasileiras, ciclos de valorização e descaso acompanharam e superpuseram em camadas suas vidas, edifícios e lugares que em algum momento tiveram uma importância maior e em outros momentos se desmancharam em total abandono e destruição. Vilas e cidades coloniais, que perderam as suas riquezas minerais ou seus pontos de pouso, foram abandonadas  até uma nova geração decidir que tal ou outro lugar, deveriam ser preservados, selecionados e referidos como memória e ou lembrança de uma época, de um acontecimento, de uma classe ou de um acontecimento impar, sua singularidade aparecendo em um mundo historicamente determinado.  Bairros, áreas centrais e setores urbanos de grandes cidades sobrevivem hoje em frangalhos, deslocados que foram os olhares e interesses econômicos e culturais para novos bairros, outras formas, outras matérias, outras verdades.
Em cada época, em cada mudança, a cada disputa do poder, da hegemonia política e cultural, da conquista da riqueza social, nas lutas e conflitos em busca de uma legitimação de seus atos, de suas posições, de suas prioridades, os vencedores tentam impor ao conjunto da sociedade, aos derrotados, os seus valores particulares como sendo os valores universais e imutáveis. 
As cidades, a maior, mais antiga e mais complexa produção coletiva humana, ‘e o palco privilegiado deste embate onde os múltiplos projetos políticos e classistas buscaram estruturar e conformar a forma primeira a ser reconhecida, controlar os olhares e os textos que amparam o poder e o controle social. As formas que configuraram a cidades, suas particularidades locais, geográficas e étnicas, aparentemente permanentes em suas durezas e materialidades, se transformam com as múltiplas velocidades das mudanças, e a mesma rua ou edificação que em uma década ou século representava uma coisa, logo, de um outro ponto de vista ou colocada em outra moldura, passa a inverter os seus sentidos e ou significados, recuperam outras memórias e outras lembranças.
Quais as imagens ou rastros que se fixam, ou são produzidos como fantasmas, marcas e indícios para a exploração ativa desta disputa pela rememoração hegemônica? Serão elas naturais, preservadas em sua originalidade a serem recuperadas em suas essências ou invenções culturais erigidas para obstruir a memória, selecionar o escolhido e sepultar o esquecimento do indesejado? 
Fazer da busca da lembrança uma luta contra o esquecimento, como um dever da memória, o dever de não esquecer, diz Santo Agostinho, mas como podemos falar do infinito senão sob a lembrança contínua do seu esquecimento, no movimento contínuo do esquecimento do ser?
Ou como nos lembra Fernando Pessoa: 
“Ah quanta vez na hora suave
Em que me esqueço...
Não ignoro o que esqueço
Canto por esquecê-lo.
Procuro despir-me do que aprendi.
Procuro esquecer-me do modo de lembrar
Que me ensinaram.”

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