quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Lisboa revisitada











Lisboa revisitada 


Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Mário de Sá-Carneiro


Após sete anos retorno a Lisboa para uma curta visita. 

O tempo ameno convida caminhadas na cidade de tantas colinas, de tantos miradouros, de tantas vistas extraídas do rio Tejo e das casas que se estendem agrupadas, refletindo o sol e os ventos marítimos.

Reconheço e me surpreendo com os lugares que já passei, admiro novamente quietas ruas e acelerados turistas, aprecio restaurados casarões e ainda me estranho com vazios vãos em ruínas eternas. 

Em uma cidade de tantos tempos e cuidados, de superpostos eventos, em abril faz cinquenta anos da revolução dos cravos, que afastou a sombra da ditadura salazarista, de suas glórias encerradas e guerras coloniais, de famílias decadentes e amores impossíveis.

Tudo muda e nada muda na cidade dos sonhos. 

O bonde repete estridente, nas ladeiras, as suas carreiras, tocam nas horas certas os sinos da igrejas, e na urbanização pombalina, de ortogonais desfechos, uma multidão circula na rua Augusta e desembarca na Praça do Comércio, aliás Terreiro do Paço. 

O sol continua se pondo em fogo, às tardes, na foz do rio, o cheiro do peixe ocupa os becos e vielas e as antigas retrosarias, na baixa, lentamente vão se extinguindo, entre linhas, fitas, agulhas e carreteis. 

Ponto a ponto.

Na minha janela, vejo a igreja de são Roque que abriga relíquias de santas virgens, acomodadas em camadas de pequenos bustos e brilhantes dourados altares enunciam a fala profética do evangelista João e jubila os santos jesuítas, mártires missionários das viagens ao Oriente.

Uma dúvida me estende. 

Lisboa dos romanos, Lisboa do império navegante, do terremoto, Lisboa da tristeza romântica de jovens poetas e escritores, da praça do regicídio e da república sequestrada pela ditadura melancólica, que tentou opor a cristandade, fado, Fátima e futebol às modernidades profanas. 

A tempo, meio século depois, Lisboa fez valer noites festivas no Chiado, músicas jovens no Bairro Alto, o fado encantado na Alfama, o gosto do vinho, da ginjinha e dos pasteis de bacalhau, expõem as diversidades e os conflitos humanos nas multidão das faces de sua população.

Em partes, receosa e pacata, país e cidade ouviram o mundo à beira do rio, onde fluem barcos e museus, onde o cais recebe brancos navios de cruzeiro e se desenhou seguidos caminhos, do parque das Nações `a Belém e ao Mosteiro dos Jerônimos. E logo após, Cascais.

Movimentam, passo a passo, o rio ao mar, o corpo que se distende em longos passeios e olhares ao infinito restaurado, sem mais desejos e ilusões diante das dimensões e dores do planeta.

Museus dos coches, dos azulejos, dos desafios da arte, pontuam e alertam aos moradores e aos viajantes navegantes ocasionais, informam das naus de conquista e de comércio que venceram a barra, que invadiram oceanos, acamparam em sonhos de riqueza ao Brasil, `a África e ao extremo oriente.

Hoje, somos nós, brasileiros, que abandonamos a pátria, jovens e maduros casais, somos nós que espremidos em apertadas aeronaves, caravelas modernas, enchemos malas de expectativas e ambições, dobrando de volta `a Portugal, pelos ares, ao singrado Atlântico. 

Submergido em acumuladas estímulos e experiencias, desloco-me lentamente, deixando que, letra a letra, imagem a imagem, que a cidade me ocupe o corpo e o espirito, me conduza e me sabe em sabor, ruídos, cheiros, gostos e olhares, me apresente um mundo possível de encontros e felicidade.

Kleber Frizzera

Lisboa