terça-feira, 8 de março de 2011

Desarmado



“Por que ruas tão largas?
Por que ruas tão retas?
Meu passo torto
foi regulado pelos becos tortos
de onde veio,...
Aqui tudo é exposto
evidente
cintilante. Aqui
obrigam-me a nascer de novo, desarmado. “

Carlos Drummond de Andrade
In Esquecer para lembrar.

segunda-feira, 7 de março de 2011

“E qual é a medida dos meus dias?” salmo 38,5



Em uma cidade de Vitoria de tantos fracassos e projetos abortados em seus 460 anos de história provinciana, registradas em suas ruínas e nas falas de seus fantasmas, mais um futuro incerto se apresenta, agora de feito virtual, na sua articulação global, submetido às ordens do capital e das lógicas do mercado.


Poderemos superar este destino e nesta oposição cidade/mundo, vazadas as barreiras e fronteiras às imateriais e instantâneas ações e pensamentos, acelerados os movimentos dos corpos, bens e informação, e propor e viver a alegria e o prazer da finitude humana?
Começarei por um texto anotado ao acaso:
Estes dias não tem um ser verdadeiro;
Eles vão quase antes de chegar;
E quando vem, não podem continuar;
Comprimem-se uns contra os outros, seguem uns aos outros e não são capazes de interromper o próprio curso.
Do passado, nada é reconvocado;
O que é esperado é algo que há de passar novamente;
Ainda não é possuído, enquanto não tiver chegado;
Não pode ser capturado, depois que chega.
Este texto, que poderia ser tão atual, diante dos tempos que vivemos, é de Santo Agostinho, em Cidade dos Homens, quando se pronuncia diante do mundo antigo em transformação, de um império romano em colapso, no século IV:
Pergunta, como o salmista em Salmo 38,5:
 “E qual é a medida dos meus dias?”
E completa, na sua fé e esperança cristã:
“Eu anseio, por esse È que fica na Jerusalém, onde não haverá morte, onde não haverá fracasso, onde o dia não há de passar, um dia que não é precedido de um ontem, nem expulso por um amanhã.
Essa medida dos meus dias, o que é, digo eu, revela-te a mim.”
O desejo e’ da unidade, impossível, mas que precisa ser desejado como possibilidade na presença de um mundo em dissolução, onde nada é reconvocado, nada é possuído, onde a violência é o horizonte temporal da errancia, que aceita que uma promessa não se cumpra, um programa não se execute, como um movimento puro, uma fraternidade sem destino.
Violência, ausência, errância.
O poeta Paul Celan nos aponta uma potência:
Escrita estreita entre muros
Impraticável verdadeira
Esta
Ascensão e volta
No futuro claro coração.
Há um caminho, uma senda estreita entre muros, mas verdadeiro que seja, é impraticável, mas pensável.
Ali, nesta limitada passagem, onde valia a violência, sem destino ou fins, aparece, no limiar, a diferença mínima do alento do outro. 
Mas como fazer nossa esta alteridade?
A dificuldade primeira é que não existe um caminho já explorado, nada pré existe, nada antecipa esta tentativa, estamos sozinhos “diante do não navegado”, onde é preciso empreender a “ascensão e a volta”, que requer a voz e a presença do outro.
Este é o desafio.
Atuar no risco do movimento incessante, onde as posições se adquirem e se estabelecem, instáveis, através da circulação, dos bens, da informação e das pessoas, em um incessante conflito com o que se estabelece nos lugares pela transformação da matéria bruta pelo trabalho humano.
Atuar no risco da ação que se define, se altera se (re) conceitua no processo permanente de negociação coletiva, na feitura dos projetos, no desenho e na execução dos caminhos sem fins. 
Atuar no risco dos conflitos, na mobilidade dos acontecimentos, na diferença, no estar juntos e separados, espacialmente e socialmente, na disputa da riqueza material e simbólica, dos espaços e sítios. 
Atuar principalmente no tempo, para salvar o efêmero e o instante, contra o que tudo dissolve, contra o que tudo interrompe, contra o que tudo escapa e se desmancha no ar, por entre os ventos e brisas. 
Encerra Celan;
Do visível, do audível, a
Palavra tenda 
Que se libera:
Juntos.

sábado, 5 de março de 2011

O dever da memoria

Será, pois, que, quando o SENHOR teu Deus te tiver dado repouso de todos os teus inimigos em redor, na terra que o SENHOR teu Deus te dá por herança, para possuí-la, ......; não te esqueças.
DEUT 25, 19
“O dever da memória e da herança e’ o dever de fazer justiça, pela lembrança, a um outro que não a si.”
Aristoteles

Somos devedores aos que nos precederam, uma divida que não se limita a guarda e preservação dos rastros e partes sobreviventes, material ou escrito, mas a um sentimento de dever aos outros, de submeter a herança a um inventario, com uma prioridade moral as vitimas, outras que nao no’s.

Outros que nao no's.
Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo, 
Lisboa com suas casas 
De várias cores. 
Alvaro de Campos