domingo, 25 de novembro de 2012

A brisa sopra


Os navios no cais. A brisa sopra”. Desde a primeira página e por todo o romance de Amilton de Almeida, a narração dos acontecimentos extraordinários e fatos comuns do cotidiano, das lembranças e descrições da cidade de Vitória, talvez a personagem principal do romance Blissful Agony, são pontuados com estas afirmações: A brisa sopra ou o vento sopra enquanto os navios estrangeiros, sempre iguais e sempre diferentes, em suas cores e calados, permanecem ancorados no cais do porto, ao lado da cidade. São os agentes de estranhamento, o vento ou a brisa, os cheiros, os ruídos e emoções que elas carregam com os encantamentos que difundem novidades e persistências, que invadem as casas e ruas de Vitória, empurrando os galhos da pitangueira, repetidamente, de encontro ao portão. O vento que empurra os chapéus levanta a poeira e vai aumentando a intensidade até que “ele não será mais ouvido”; a brisa que sopra em setembro e também no dia 17 de janeiro, quando, então, “invade todos os corredores, quando traz para as ruas” o cheiro do mofo”, até que em certos dias de final de outono, “o cheiro das flores junta-se ao cheiro da cidade lavada no sábado de manhã”. 
O vento e a brisa, em cada tempo do romance, em cada dia de sua cronologia fantástica, agem como os elementos adicionadores de qualidades e sentidos imediatos à cidade física material, cujas alterações aparecem tão lentas no repetido quotidiano, que mal percebemos, nós, os seus moradores, as pequenas mudanças que vão carregando para longe os nossos casos, desmanchando as nossas lembranças e as esperanças. 
Segundo a apresentação crítica do romance por Reinaldo Santos Neves:“ Ë uma cidade inteira que identifico aqui como personagem central, expostas em detalhe na cruciante tentativa de seguir vivendo o destino terrível de cidade infame, e nem por isso menos digna de ser amada sobre todas as outras.”
. Uma cidade onde a manga que cai e o vento que sopra, é a mesma manga e é o mesmo vento que jamais caíram e jamais sopraram e que ainda, no futuro, vão cair e soprar “enquanto mundo for mundo”. São elas, as frutas e as brisas, que aqui amadurecem e caem, e aqui sopram e circulam, como também caem e também sopram em cada parte e todo lugar amado do mundo, no centro e na periferia, submetidos ambos, à fortuna e aos imprevistos dos múltiplos acontecimentos e das suas copiosas falas.
Este é o instante que a Praça Costa Pereira se encontra deserta para sempre. Longe, muito longe daqui, o vento sopra. Este é o instante em que nada mais a ser dito. Observe. Este é o instante em que ouve o coração do mundo. Este é o instante em que o vento sopra, invadindo a cidade seus quatro postos cardeais. Observe. Este é o instante em que Vitória se parece com qualquer cidade do mundo, apresentando-se anônima para sempre”.
. Com estas seqüências de frases, Amilton de Almeida prepara o incompleto encerramento de seu romance, quando, constata, surpreende-se que “nada mais há a ser dito”, pois logo aí perto dele e de nós, “a praça Costa Pereira se encontra deserta de pessoas”.
É no jardim da Costa Pereira que o poeta Valdo Motta também se contempla  imerso em suas palmas, quando as brisas passam leve, suavemente, como se ai jazesse, em um tempo  profundo e infinito, onde a felicidade poderia existir no seio da natureza, mesmo quando refeita em jardim.
Se o que eu fora jazesse
Sob a terra fresca e perfumada
Deste jardim público;
Se estas gramíneas e estas palmas lânguidas
Fossem filamentos clorofilados de mim
E em cujas artérias corresse o meu sangue,
A seiva rubra cambiada em verde;
E se nessa minha existência vegetal
Houvesse, ao menos de quando em vez,
Esta brisa que neste instante acaricia
As folhas longas e lassas,
Como se as ninasse para um sono
Profundo e infinito...
Se o que eu fora jazesse
Aqui diante de mim que estou imerso
Na contemplação das folhas embaladas 
Pela brisa suave que as perpassa, leve, suavemente...
Ah, eu tenho certeza que seria feliz!

Pois o que pode ser dito e vivido só o pode ser pelas pessoas que falam e fazem, em seus momentos delicados de amores e paixões, que, quando elas se vão, os homens e as suas emoções, tocadas pela brisa e pelo vento, as pessoas e os acontecimentos, tocados pelo tempo e suas mudanças, um deserto anônimo e igual a todos, se abate sobre a cidade e sobre a Praça Costa Pereira. Uma cidade, um jardim e uma praça que se assemelham, “ a tantas outras cidades e lugares como neste mágico instante” , onde nada pode ser mais dito, no instante em que o vento sopra e, quando, se atentos, podemos ouvir o som surdo do coração do mundo e contemplar a suas folhas embaladas pelo vento.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Felicidade2




Feliz o homem 
Cujo espirito esta’ sempre sereno
Sem temer a Fortuna e aceitando o Destino.

Virgilio
As Georgicas


Felicidade




Creiam-me, essa era feliz precedeu os arquitetos.
....
Vivia-se sem temor sob aqueles tetos rústicos
A taipa cobria os homens livres; sob o mármore e o ouro, habita a servidão

Seneca, carta XC

domingo, 14 de outubro de 2012

a lei




Em um universo fragmentado nao ha’ logos que possa reunir todos os pedaços; nao ha’ lei que os ligue a um todo, nao ha’ um todo a redescobrir….. e no entanto ha’ uma lei; mas o que mudou foi sua natureza, sua função, sua relação. 
Na medida em que ela rege um mundo de fragmentos nao totalizáveis e nao totalizados,  se torna potência primordial,… a lei nao diz mais o que e’ bom, mas e’ bom o que diz a lei.
Ela adquire uma espantosa unidade, …. que e’ absolutamente vazia, unicamente formal, visto que ela nao nos permite conhecer nenhum objeto distinto, nenhuma totalidade, nenhum bem de referencia,… ao invés de juntar e adaptar partes, ela as separa, as compartimenta.
Nada nos possibilitando conhecer, a lei so’ nos mostra o que ela e’ marcando nossa carne ,…incogniscivel, a lei so’ se dar a conhecer quando aplica as mais duras sanções ao nosso corpo supliciado.


Gilles Deleuze



sábado, 15 de setembro de 2012

Linhas


  1. Sentidos embaraçados. 
  2. Limites e linhas em novelos enroladas, 
  3. cores e tintas, 
  4. em suaves campos de prazer e encantos.

domingo, 26 de agosto de 2012

Vitoria, agosto 2012


E hoje, não há mais limites, referentes físicos a alcançar com os olhos ou com as pernas, a escalar em romaria, a espairecer no intervalo, a namorar na ponta do píer. 
Explodidos seus encontros em fragmentos, fronteiras excluem, separam, segregam os protegidos em ninhos de segurança controlados.  
As linhas e condutos são agora invisíveis, linhas astrais a percorrer ares e céus em ondas elétricas, magnéticas. 
Os nós se escondem em paredes guardadas, privadas, articulando vídeos e imagens, lugares de novos e múltiplos interesses carnais. 
A lua já não nasce mais na ponta de Tubarão.
Inevitável. 
Prefiro acreditar que os olhos verão, os pés a tatear, continuaremos cheirando a maresia e a terra molhada, e os ouvidos se embalarão em ondas quentes e úmidas como o repetido bater das ondas. 
Deixando a pele salgada queimar ao sol, no corpo as marcas da natureza e da história, nos olhos e coração gravados. 
E as redes de amor e compaixão serão mais fortes, como a vida, para poetizar o cotidiano nesta cidade presépio, superpondo, criando outras notas, abrindo múltiplos caminhos, reconhecendo o outro, os outros, me reconhecendo gente, como pessoa, nesta cidade  de Vitória, construída pelos homens e abençoada pelos deuses e Nossa Senhora da Penha.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Encarnado



  1. Esqueci que sofri, perdi a roda, o fio e a fala,
  2. o caminho e a ligação,
  3. perdi o lado, o perto e o longe, o próximo e o distante,
  4. o risco, desatei, sem volta,
  5. o laço encarnado.


sábado, 23 de junho de 2012

Inseguro.k


Queremos saber da paisagem, saber das matas e seus verdes segmentos se dobrando, em contínuos mantos, ao longo do infinito da montanha, escondendo seus fins contra o anil e as brancas nuvens em colmeias desdobradas.
Ouviremos juntos o ruído dos pássaros, do silvar do vento, de inúmeros farrapos e fragmentos das vozes em dialogo, em seus mais altos e mais ostentosos lugares. 
Mas,
me digam, onde se esconderam os meus passados, onde foram desligados os meus passos e perdidas as minhas marcas, onde abandonados os riscos profundos na madeira? 
Queremos lançar frescas mensagens aos que ainda nao vieram, aos que ainda nao chegaram, aos que ainda, talvez em futuro, em cada canto do mundo, sorverão os frutos doirados do sol. 
Inquietas e instáveis situações.
Permissões.
Os códigos e as leis divulgam o pecado e delimitam em mapas os movimentos e posturas, reduzem os corpos, suas danças recolhidas a contidos gestos repetidos de tanta ilusão.
E o poder. Final.
Quando estica a corda, 
Arrebenta a ordem e a fala.
Kleber Frizzera
abril 2012
maio 2012

sábado, 16 de junho de 2012

Gesta


Quem me indicou a palavra e a gesta, informou o nome e o caminho, 
desfez o no’,
quem nos propôs o pacto, escolheu a testemunha, imprimiu o livro, 
riscou a estrada,
quem foi?
Juntou os cacos partidos da ânfora, ligou as partes, costurou os pedaços desfeitos pelo tempo, pelo vento, pela areia acumulada nas encruzilhadas.
Emendou o fio partido, a linha, o novelo, desatou as cores em arco, sobrepôs na madrugada a luz matutina.
Quem me olhou e me viu,
Olho no olho, 
Perdição.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Amargura



Pois, ainda que a alma de um homem esteja atormentada e que seu coração esteja aflito, quando “ um poeta , servo das musas”, canta os feitos dos antepassados e a santidade dos deuses, esse homem esquecera’ seu abatimento, e as da’divas das deusas os afastarão de suas amarguras.
Eric Voegelin

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Verdade, nem ódio nem perdão


A palavra verdade, na tradição grega ocidental, é exatamente o contrário da palavra esquecimento. É algo tão surpreendentemente forte que não abriga nem o ressentimento, nem o ódio, nem tampouco o perdão. Ela é só e, sobretudo, o contrário do esquecimento. É memória e é história. É a capacidade humana de contar o que aconteceu.
Dilma Roussef 

sábado, 12 de maio de 2012

Redencao


Redenção
Maio 2012/ revisão 1



Acabado o prazo de validade, no limite ultimo da finitude material e humana, nas nossas cidades e vilas, edifícios e lugares tentam se manter vivos, escorados de pé, ameaçados pelos múltiplos desejos de novos projetos e construções, fragilizados diante dos inexoráveis pesos e forcas do destino.
Suportaremos os seus tristes fins, seus lentos desgastes e desmoronamentos, verteremos furtivas lágrimas sobre suas pedras e ruínas, e encerrados os atos expiatórios, perderemos definitivamente suas memórias e passados?
Deixaremos nos levar, como o rio que nunca mais retorna, de agua e fluxo, ao mesmo ponto e margem, rio que nunca mais passara’ sob os arcos da mesma ponte de pedra, ou quando retesado o braço, tentaremos o arco ao tempo, lançada a flecha apontada contra os fragmentos entulhados ocupados ao denso olhar.
Circulamos , então, aliviados, com prazeres melancólicos nas suas ruas e becos históricos, aspirando, casa após casa, o doce odor das trepadeiras e glicínias do acontecimento e da salvação, debruçadas seus galhos e espinhos no profundo recorte do rio.

Patrimonio histórico.
Invenção nacionalista a definir, selecionar tempos e lugares excepcionais, estes doces momentos únicos, de origem e inicio, de começo da vida e das identidades regionais, repetidas, divulgadas, enaltecidas, a suportar atuais projetos, imposições autoritárias e ordens derivadas.
Cada uma em seu quadrado, cada um em sua etnia, aspirando solitário o seu gosto pessoal ou posição.
Em sua ordem. Qualquer que seja.
Especialistas e pesquisadores preparam, minuciosamente, inventários, listas, anotam registros em profusão, produzem livros, fotos, desenhos, imagens comparadas, lado a lado, nomeando estilos, inventando fases, descobrindo influencias uns de outros, vindo de alem mar ou do mais próximo gesto manual. Natural.
Falas eloquentes, sagazes, encaminham `a observação publica uma serie de elaborados brasões e frontões, feitos de estuque ou de mármore cinzelados, escondidos no alto das construções, definindo seus recortes e marcas de outras épocas, seus abandonados valores, perdidas as fontes simbólicas de suas primeiras ilusões.
Governantes se aproximam, cautelosos a principio, mas rapidamente nomeiam amáveis  tão belas figuras e imagens, apropriando-se de suas identidades, restauradas sem riscos, para de suas origens ( pretensas) imaculadas, unificar e agregar disputas inconciliáveis.  Viram leis, geram alentados regulamentos e burocratas mis, viram leis e pecados, viram certos e errados, se transformam em vida e morte.
Mas não se recordam, esquecem como o anjo, de asas contra o vento da tempestade, das catástrofes e guerras, das violências originais, contra o índio, o escravo, contra o meeiro, o trabalhador.
Não se lembram das perdas deixadas, abandonadas pelo chão, enterradas os seus pedaços, fragmentos e partes deslocadas, afastadas de seus museus, de suas historias, escondidos os projetos esclarecidos desperdiçados, os sonhos desfeitos, as vontades estilhaçadas pela dor e pelo isolamento, deixada, imposta a província a sina de esconder suas penas em medíocres escrevinhadores e gazetas.
Sobram para este esquecimento as marcas duras nos corpos, da chibata e do trabalho escravo, da repetição sem fim do esforço inútil, repetido, sem fim.
Sobram, escondidas, as marcas do poder e da humilhação.
Sobram na pele, as cicatrizes, e na boca, o gosto amargo de fel.
Sobram historias de mãe para filha, de pai para a criança que se lança, jovem temeroso, nas ruas na  busca da sobrevivência, sobram as conversas de companheiros, de vizinhos da dor e da exploração, mas também colegas da alegria e da expectativa.
Sobram desejos, expectativas de reparação e redenção.

Como os homens, as construções são efémeras, finitas. Amargam com o tempo, cicatrizes e dores, se tornam velhas e infelizes, apagadas, mortiças em seus cantos. Se abandonadas, se tornam imprestáveis, inúteis, marcando em rugas e riscos suas faces, e se deixadas `a luz e `a chuva, vão se embotando, pálidas ate’ que uma forca maior, natural ou artificial derrube suas partes e estruturas deixando apenas finos resíduos e partes sobre o solo. Com mais tempo, apenas poeira, restos de pedras enfrentam os séculos, os ventos e tempestades, e ao visitante desatento, a vida se apresenta decaída sem começos, sem interesses ou fins. Acabam seus sentidos e afetos como os homens, suas ordens e civilizações..
Ansiosas logo mais aparecem outras ordens a confundir, se apresentam outros monturos a acumular.
Não venho para esclarecer, venho para confundir.”
Como a arte, o amor e  o ódio, como a arte e a ciência.
Mas permanecem, ou não, os símbolos imemoriais. Descobertos em  espírito e soterradas em matéria degradada, registrados em contos, em cadernos e desenhos de viajantes e naturalistas europeus perdidos em selvas e desertos, recolhidos sob a mata e a areia, esquecidos seus moradores e construtores primeiros.
Portas e janelas, paredes e portais, vãos e opacos muros a limitar lugares e a direcionar vistas e visões, pisos e cobertas protetoras, seus cheiros permanecem, suados, de barro e tijolo, essências de pedra e cal, de madeira e duras ferragens. Estruturas.
Mas que fazer deste peso morto?
Como se livrar deste cadáver insepulto que obstrui as ruas e quarteirões, desta massa  disforme, sepulcral, despida de seus sentidos, onde habitam espíritos e fantasmas.

Outros movimentos, mais agressivos se enfrentam na cidade. Violentos veículos buscam acelerar o a velocidade das vias, mas mesmo potencializados, motores e maquinas, se deparam com mais e mais personagens, mais e mais obstáculos, conflitos a impedir que se rompam as barreiras.
Cabe guardar então os nossos mortos?
Ou deixa-los aparecer, fantasmas como uma reserva contra o insensível capital, como uma parede frágil `a avalanche global?

e uma cruel desilusão, foi tudo que ficou, ficou, para machucar o meu coração”.
Preservar o mundo das ruínas contra o mal maior.

Que nos aguardara’ ?
Qual o futuro que brilha, ansioso a sua aparicao?
Qual linha dos seus limites, de sua finitude, da incerteza de suas partes e totalidades?

Pensar uma possível aliança, agregar mortos e vivos somando as suas pedras, corpos e diversas formas, perdas e ganhos, e assim darão juntos conta dos desejos insatisfeitos, prestarão juntos conta das promessas incumpridas, das insensatas arrumações da redenção anunciada?

Olhemos nossos lugares. Talvez, insistentes ao nosso olhar, possam nos falar. De suas origens, contar de suas incompletas historias, dizer das inúmeras vidas que circularam em seus pedaços, de seus ruídos e cheiros impertinentes, dos que foram, dos que restam ainda em partes, desmembrados mas persistentes.
Ouçamos seus casos. Dispersos, de eventos felizes e tristes, de chegadas e partidas, romances de amores e dores. Felizes e tristes momentos únicos, de encontros e desencontros.
As suas faces, revoltas, as suas marcas, as suas tintas, as folhas das arvores que de ano em ano ocuparam as calcadas, encheram seus jardins e caminhos.
Os seus telhados, complacentes, feitos de escuras telhas empoeiradas  pela areia, pelo medo, retidos seus destinos indesejados pela cobertura, protetora e guardiã.
Então.


kleber frizzera


sábado, 7 de abril de 2012

Praça Costa Pereira 1959



“Esquecemos há muito tempo o ritual sob o qual foi edificada a casa de nossa vida, 
Quando, porém, ela está para ser assaltada e as bombas inimigas já atingem, que extenuadas, extravagantes antiguidades elas nos põem a nu ali nos fundamentos.”
Walter Benjamim 
Em algum momento da década de cinqüenta do século XX, a noite da Praça Costa Pereira foi iluminada com lâmpadas fluorescentes, assentadas em bifrontes pontas de lança sobre os postes de ferro, guardiões, como mostra e denuncia a foto única, em uma transformação urbana esquisita e singular. 
Mais que a modernidade, buscada em ânsia na exposição da nova tecnologia, é como que uma espada de luz viesse, em combate, tentar espantar os fantasmas, afastar os maus espíritos, os espectros que no escuro, teimassem em se manter no velho Largo da Conceição, reconfigurado, em geometria regularizadora, pela ação estatal. 
O quadrado instalado pelo arquiteto sobre o piso aterrado da cidade, junto ao alinhamento das avenidas do cais do porto retificado, - caminhos estimuladores ao novo e acelerado movimento -, foi uma das marcas simbólicas de mais uma refundação da antiga capital. Em seus paralelos flancos se estabeleceriam os templos da cultura e do comércio exportador do café, em seu interior se moverão, entre seus lados iguais, homens e mulheres, transitando olhares em paralelo com a linha do bonde elétrico que leva e trás, dos novos bairros balneários, os múltiplos moradores da cidade. A nova iluminação reitera o impulso colonial de possessão, busca, na continuidade intuída por administradores atentos, reforçar o desejo anterior, de vitalização da ocupação da zona central, neste momento já em início de esvaziamento. 
São duas formas montadas em superposição. O duro e rígido desenho enxertado sobre os fios emaranhados do novelo original das ruas e vielas do passado português e sobre ela a luz alva e pálida, segmentos fluorescentes, que, à noite, substituem, em céu e glória, o amarelo brilho dos antigos globos incandescentes. 
Dois momentos próximos. Vãs tentativas, ambos, de tentar salvar a cidade, porventura, condenada, de conter em um centro, contenedor vital, a expansão sem norte para suas beiradas e periferias, desviado definitivamente seu futuro do umbigo original. Acesas as brancas luzes sobre o polígono instaurador, acredita-se em novas esperanças, de registro, de compartilhar em terra e ar, do local do começo e de seu fim; supõe-se a vontade e a certeza de suprimir, para sempre, as sombras primevas recalcitrantes, espera-se conter em sua unidade reinventada o caminho e o risco elementar. 
Estranho acaso ou maldição. Alguns anos depois, um outro artista, Maurício Salgueiro, esculpe, impõe em seu centro de praça, sobre um pequeno lago, uma escultura - A mãe-, aglomerado de metal suspenso em cordão umbilical, como explícita homenagem ou documento distraído ao esforço germinal, original, desperdiçado, desagregado pela cidade estilhaçada. 
Hoje, sentados em seus bancos, longos e curvos bancos em sombras, sob suas grandes e frescas árvores, perdidos os nomes e as citações primitivas, nós filhos solitários do presente, aguardamos, pacientes, o tempo desfiar e contar, aos mais curiosos observadores, as suas perdas e ilusões. Espiamos, nostálgicos, ciosos, estas estranhas e líricas obsessões, desmanchando-se ao vento do mar, em pequenas gotas de chuvas de verão.
        

domingo, 25 de março de 2012

Paisagem e cidade Anotações.1



Quem nos fará ver a felicidade ?
Quem nos dará a conhecer o bem?
Salmos 4,6
Anotações.1
Como toda invenção humana, a paisagem, isto e’, a forma artificial do entorno material, econômico e cultural de uma sociedade, produzida pelo trabalho, imposta pelo poder, apropriada e compreendida coletivamente, através de uma memória compartilhada, se transforma, real e simbolicamente, com o tempo histórico e as transformações sociais e políticas, mantendo uma certa invariância, um paradigma inteligível, “um recorte claro na informe continuidade da experiência sensível”. 

Uma cidade confronta, em suas formas, no mesmo espaço geográfico, épocas diferentes, oferecendo aos olhares diversos uma história sedimentada de comportamentos, gostos e formas culturais, suscitando paixões complexas em um espaço de deslocamentos, aproximações e distanciamentos, e ao mesmo tempo, conforme Alain Badiou “combina uma unidade orgânica com o caráter sempre reconhecível de sua forma especifica” .
A natureza transformada e o meio urbano, construção material e suas representações imateriais, de certa maneira, são ambos, artifícios culturais, elaborados, produzidos e apropriados de acordo com as formas dominantes da produção e as legitimações majoritárias em cada momento histórico, correspondendo as suas descrições e representações simbólicas, de pertencimento e vivencias individuais e sociais dos lugares, territórios e espaços sociais, ‘as produzidas pelas classes sociais ou aos setores hegemônicos em cada período, mas também como a arte, diz André Malraux, “não é uma dependência dos povos do efêmero, de suas casas e de seus móveis, mas da verdade que eles criaram um após os outros. A arte não depende do túmulo, mas depende do eterno” .
Assim, para cada período histórico, a paisagem, natural e construída, se apresenta em formatos diferentes, é enquadrada em molduras variadas, reconhecida ou negada, não vista ou percebida, preservada ou destruída, os seus valores de permanência e perdas ganhando e perdendo importâncias diante das inúmeras possibilidades de leitura e posicionamento pessoal ou de grupo, em suas múltiplas escolhas de pontos de vistas e perspectivas, mas também é o que permanece, é aquilo em qual permanecemos, não é somente o meio, o ambiente das coisas e dos corpos onde vivemos e falamos, é também o arrebatar da verdade que nos requer, no acontecimento singular, que nos convoca a participar.
O mar e as praias que até o século XVIII, em todo o mundo, eram vistas como os lugares do risco, do mal, quando, no litoral, com o olhar perdido diante do ilimitado, repletos estavam os oceanos com seus monstros e fantasmas, passam a serem prescritos, suas águas, suas areias, sol e viagens como terapias indicadas para as doenças de todo tipo, principalmente as de origem nervosas e como adequados espaços de recreio, lazer e esportes. 
Da mesma forma, as elevadas montanhas, suas escarpas e abruptos cortes, seus sombrios vales e picos, antigos e primitivos lugares onde se escondiam mistérios e dores, passam a ser, a partir desta época, os destinos dos aristocratas ingleses em busca de ilustração, onde o espírito racional se eleva diante do maravilhoso, do inefável, do sublime, onde entre o tipo e o caso especifico, podemos criar, e, portanto podemos pensar o ponto que ali permanece indiscernível, escreve Virgilio, “quando chega o abrupto das montanhas, ali onde cessam todos os caminhos”, e quando ”o céu está invadido por um surdo estrepito e as torrentes são uma cavalgada desde o alto dos picos”. 
Aqui no Brasil, as cerradas florestas tropicais, que assustavam e amedrontavam os viajantes pioneiros, passam a serem vistas e admiradas mais recentemente como locais da beleza, da vida intensa e diversificada, da sede original da natureza bela e inculta. Onde o esforço do imigrante reconhecia o adversário a ser domado e recortado pela faina do trabalho para constituir o plantio e a domesticação da paisagem, reconhecemos agora o inefável que se articula na ordem bruta do natural, a ser desvendado, em camadas, pela experiência sensível e pela ciência.  
Também as cidades de origem secular, como Roma, abandonadas, após a queda do império, desfeitas as suas ruas e edifícios, por séculos e gerações, em outro instante, a partir do romantismo nacionalista do século XIX, são reabilitadas, restauradas e onde as ruínas se acumularam, novos viajantes, turistas, se deslumbram com as riquezas e filigranas dos seus desenhos antigos, com as belezas imemoriais das pedras, palácios e estatuas desenterradas de seus túmulos.
Mesmo em cidades de história recente, como as cidades brasileiras, ciclos de valorização e descaso acompanharam e superpuseram em camadas suas vidas, edifícios e lugares que em algum momento tiveram uma importância maior e em outros momentos se desmancharam em total abandono e destruição. Vilas e cidades coloniais, que perderam as suas riquezas minerais ou seus pontos de pouso, foram abandonadas  até uma nova geração decidir que tal ou outro lugar, deveriam ser preservados, selecionados e referidos como memória e ou lembrança de uma época, de um acontecimento, de uma classe ou de um acontecimento impar, sua singularidade aparecendo em um mundo historicamente determinado.  Bairros, áreas centrais e setores urbanos de grandes cidades sobrevivem hoje em frangalhos, deslocados que foram os olhares e interesses econômicos e culturais para novos bairros, outras formas, outras matérias, outras verdades.
Em cada época, em cada mudança, a cada disputa do poder, da hegemonia política e cultural, da conquista da riqueza social, nas lutas e conflitos em busca de uma legitimação de seus atos, de suas posições, de suas prioridades, os vencedores tentam impor ao conjunto da sociedade, aos derrotados, os seus valores particulares como sendo os valores universais e imutáveis. 
As cidades, a maior, mais antiga e mais complexa produção coletiva humana, ‘e o palco privilegiado deste embate onde os múltiplos projetos políticos e classistas buscaram estruturar e conformar a forma primeira a ser reconhecida, controlar os olhares e os textos que amparam o poder e o controle social. As formas que configuraram a cidades, suas particularidades locais, geográficas e étnicas, aparentemente permanentes em suas durezas e materialidades, se transformam com as múltiplas velocidades das mudanças, e a mesma rua ou edificação que em uma década ou século representava uma coisa, logo, de um outro ponto de vista ou colocada em outra moldura, passa a inverter os seus sentidos e ou significados, recuperam outras memórias e outras lembranças.
Quais as imagens ou rastros que se fixam, ou são produzidos como fantasmas, marcas e indícios para a exploração ativa desta disputa pela rememoração hegemônica? Serão elas naturais, preservadas em sua originalidade a serem recuperadas em suas essências ou invenções culturais erigidas para obstruir a memória, selecionar o escolhido e sepultar o esquecimento do indesejado? 
Fazer da busca da lembrança uma luta contra o esquecimento, como um dever da memória, o dever de não esquecer, diz Santo Agostinho, mas como podemos falar do infinito senão sob a lembrança contínua do seu esquecimento, no movimento contínuo do esquecimento do ser?
Ou como nos lembra Fernando Pessoa: 
“Ah quanta vez na hora suave
Em que me esqueço...
Não ignoro o que esqueço
Canto por esquecê-lo.
Procuro despir-me do que aprendi.
Procuro esquecer-me do modo de lembrar
Que me ensinaram.”

sábado, 10 de março de 2012

Ser, mundo, evento.


 Fazer do futuro um recuperação do passado, uma vitória após uma seqüência de batalhas, “de derrota em derrota ate’ a vitória final”, como disse Mao, e’ possível somente na medida que não apenas vemos, mas também desejemos esta vitória.
Nesta disputa, o passado não e’ uma saudade melancólica, um acumulo de acontecimentos vazios e objetos fetiches, mas um receptáculo de projetos desperdiçados, onde presentes nas suas ruínas e partes desconexas podem estar as esperanças e os sonhos de uma emancipação radical da humanidade.
Mas onde estarão as verdadeiras, legitimas peças do patrimônio histórico coletivo, a serem usadas e transformadas?
Quais as formas, em suas perenidades, na sua pulsão de morte, na sua incrustação no solo original, quais as formas a serem mixadas, na carnavalização revolucionária, em uma imposição  de um novo mundo?
Um novo mundo que desvele as suas aparências particulares e neste intervalo vazio permita gerar novos nomes e lugares, ocupar falas  que “ trarão `a vida o mundo desconhecido que esta’ a nossa espera porque esperamos por ele”.
Mas e se o futuro ao qual se deve ser fiel for o futuro do próprio passado, em outras palavras, o potencial emancipato'rio que não se realizou por causa do fracasso das tentativas passadas  e, por esta razão, continua a nos perseguir?” diz Zizek, e o excesso do entusiasmo revolucionário e’ portanto, o de um futuro do/ no passado, “um evento espectral que aguarda sua encarnação apropriada.
Neste ponto, Slavov Zizek recorre a elaboração de Deleuze sobre a repetição como a forma do surgimento do novo, ou como Alain Badiou, quando desenvolve o conceito de ressurreição, como uma destinação subjetiva de um evento, uma reativação de um acontecimento cujos traços foram obliterados ou apagados, onde todo sujeito fiel pode reincorporar `a sua presença evental um fragmento da verdade, que foi enterrada por baixo da barra da ocultação
E’ esta reincorporacao que ele chama de ressurreição.
Recolher, separar, deixar valer uma memória que não se submeta `as ordens imperiosas do arquivo e da história oficial, recuperar uma memória ancorada nas falas abafadas, nas fluidas transmissões orais, dos incessantes fazeres e cantos, uma memória de muitas festas e paixões, onde os pequenos acontecimentos se movimentam nos estreitos vazios da dura cidade.
Mas como escolher?
Haverão traços que ultrapassem, hoje escondidos, antes soterrados,  a essência dos lugares, a origem e começos desta segunda natureza que nos abriga e nos engana?
Que nos ama e nos entristece.

A sacralidade da lei



O que tem feito que as leis, suas palavras e feição, tenham superado os seus sentidos e objetivos, passando a serem um destino em si, interpretadas unicamente em sua literalidade, manipuladas em ações processuais, que resistem à discussão e ao contraditório do mérito de sua aplicação?
Mas haveria o pecado e a morte se não houvesse a lei, diz São Paulo? 
Haveria o advogado, o juiz, o promotor, o estado e o burocrata se não houvessem as regras, as normas e as leis?

sábado, 4 de fevereiro de 2012

sábado, 21 de janeiro de 2012

Ordinário

Quando do ordinário, a vida surpreende e escapa `a determinação da imagem criada, da ordem imposta da necessidade, da face superficial do visível e banal cotidiano? 
Estranhos e únicos momentos, estes primeiros a serem aproveitados, imprevisíveis quando aos seus tempos de graça e retornos, aguardam outras excepcionais oportunidades que poderão vir. 
Virão.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Edmonton inverno 2012

Edmonton. São 19,09 h, quinta feira. Nenhum carro se movimenta nas ruas. Os sinais de transito piscam inutilmente, verde e vermelho, verde e vermelho. Porque as luzes dos escritórios continuam acesas, em filas e colunas verticais?