quarta-feira, 16 de maio de 2012

Verdade, nem ódio nem perdão


A palavra verdade, na tradição grega ocidental, é exatamente o contrário da palavra esquecimento. É algo tão surpreendentemente forte que não abriga nem o ressentimento, nem o ódio, nem tampouco o perdão. Ela é só e, sobretudo, o contrário do esquecimento. É memória e é história. É a capacidade humana de contar o que aconteceu.
Dilma Roussef 

sábado, 12 de maio de 2012

Redencao


Redenção
Maio 2012/ revisão 1



Acabado o prazo de validade, no limite ultimo da finitude material e humana, nas nossas cidades e vilas, edifícios e lugares tentam se manter vivos, escorados de pé, ameaçados pelos múltiplos desejos de novos projetos e construções, fragilizados diante dos inexoráveis pesos e forcas do destino.
Suportaremos os seus tristes fins, seus lentos desgastes e desmoronamentos, verteremos furtivas lágrimas sobre suas pedras e ruínas, e encerrados os atos expiatórios, perderemos definitivamente suas memórias e passados?
Deixaremos nos levar, como o rio que nunca mais retorna, de agua e fluxo, ao mesmo ponto e margem, rio que nunca mais passara’ sob os arcos da mesma ponte de pedra, ou quando retesado o braço, tentaremos o arco ao tempo, lançada a flecha apontada contra os fragmentos entulhados ocupados ao denso olhar.
Circulamos , então, aliviados, com prazeres melancólicos nas suas ruas e becos históricos, aspirando, casa após casa, o doce odor das trepadeiras e glicínias do acontecimento e da salvação, debruçadas seus galhos e espinhos no profundo recorte do rio.

Patrimonio histórico.
Invenção nacionalista a definir, selecionar tempos e lugares excepcionais, estes doces momentos únicos, de origem e inicio, de começo da vida e das identidades regionais, repetidas, divulgadas, enaltecidas, a suportar atuais projetos, imposições autoritárias e ordens derivadas.
Cada uma em seu quadrado, cada um em sua etnia, aspirando solitário o seu gosto pessoal ou posição.
Em sua ordem. Qualquer que seja.
Especialistas e pesquisadores preparam, minuciosamente, inventários, listas, anotam registros em profusão, produzem livros, fotos, desenhos, imagens comparadas, lado a lado, nomeando estilos, inventando fases, descobrindo influencias uns de outros, vindo de alem mar ou do mais próximo gesto manual. Natural.
Falas eloquentes, sagazes, encaminham `a observação publica uma serie de elaborados brasões e frontões, feitos de estuque ou de mármore cinzelados, escondidos no alto das construções, definindo seus recortes e marcas de outras épocas, seus abandonados valores, perdidas as fontes simbólicas de suas primeiras ilusões.
Governantes se aproximam, cautelosos a principio, mas rapidamente nomeiam amáveis  tão belas figuras e imagens, apropriando-se de suas identidades, restauradas sem riscos, para de suas origens ( pretensas) imaculadas, unificar e agregar disputas inconciliáveis.  Viram leis, geram alentados regulamentos e burocratas mis, viram leis e pecados, viram certos e errados, se transformam em vida e morte.
Mas não se recordam, esquecem como o anjo, de asas contra o vento da tempestade, das catástrofes e guerras, das violências originais, contra o índio, o escravo, contra o meeiro, o trabalhador.
Não se lembram das perdas deixadas, abandonadas pelo chão, enterradas os seus pedaços, fragmentos e partes deslocadas, afastadas de seus museus, de suas historias, escondidos os projetos esclarecidos desperdiçados, os sonhos desfeitos, as vontades estilhaçadas pela dor e pelo isolamento, deixada, imposta a província a sina de esconder suas penas em medíocres escrevinhadores e gazetas.
Sobram para este esquecimento as marcas duras nos corpos, da chibata e do trabalho escravo, da repetição sem fim do esforço inútil, repetido, sem fim.
Sobram, escondidas, as marcas do poder e da humilhação.
Sobram na pele, as cicatrizes, e na boca, o gosto amargo de fel.
Sobram historias de mãe para filha, de pai para a criança que se lança, jovem temeroso, nas ruas na  busca da sobrevivência, sobram as conversas de companheiros, de vizinhos da dor e da exploração, mas também colegas da alegria e da expectativa.
Sobram desejos, expectativas de reparação e redenção.

Como os homens, as construções são efémeras, finitas. Amargam com o tempo, cicatrizes e dores, se tornam velhas e infelizes, apagadas, mortiças em seus cantos. Se abandonadas, se tornam imprestáveis, inúteis, marcando em rugas e riscos suas faces, e se deixadas `a luz e `a chuva, vão se embotando, pálidas ate’ que uma forca maior, natural ou artificial derrube suas partes e estruturas deixando apenas finos resíduos e partes sobre o solo. Com mais tempo, apenas poeira, restos de pedras enfrentam os séculos, os ventos e tempestades, e ao visitante desatento, a vida se apresenta decaída sem começos, sem interesses ou fins. Acabam seus sentidos e afetos como os homens, suas ordens e civilizações..
Ansiosas logo mais aparecem outras ordens a confundir, se apresentam outros monturos a acumular.
Não venho para esclarecer, venho para confundir.”
Como a arte, o amor e  o ódio, como a arte e a ciência.
Mas permanecem, ou não, os símbolos imemoriais. Descobertos em  espírito e soterradas em matéria degradada, registrados em contos, em cadernos e desenhos de viajantes e naturalistas europeus perdidos em selvas e desertos, recolhidos sob a mata e a areia, esquecidos seus moradores e construtores primeiros.
Portas e janelas, paredes e portais, vãos e opacos muros a limitar lugares e a direcionar vistas e visões, pisos e cobertas protetoras, seus cheiros permanecem, suados, de barro e tijolo, essências de pedra e cal, de madeira e duras ferragens. Estruturas.
Mas que fazer deste peso morto?
Como se livrar deste cadáver insepulto que obstrui as ruas e quarteirões, desta massa  disforme, sepulcral, despida de seus sentidos, onde habitam espíritos e fantasmas.

Outros movimentos, mais agressivos se enfrentam na cidade. Violentos veículos buscam acelerar o a velocidade das vias, mas mesmo potencializados, motores e maquinas, se deparam com mais e mais personagens, mais e mais obstáculos, conflitos a impedir que se rompam as barreiras.
Cabe guardar então os nossos mortos?
Ou deixa-los aparecer, fantasmas como uma reserva contra o insensível capital, como uma parede frágil `a avalanche global?

e uma cruel desilusão, foi tudo que ficou, ficou, para machucar o meu coração”.
Preservar o mundo das ruínas contra o mal maior.

Que nos aguardara’ ?
Qual o futuro que brilha, ansioso a sua aparicao?
Qual linha dos seus limites, de sua finitude, da incerteza de suas partes e totalidades?

Pensar uma possível aliança, agregar mortos e vivos somando as suas pedras, corpos e diversas formas, perdas e ganhos, e assim darão juntos conta dos desejos insatisfeitos, prestarão juntos conta das promessas incumpridas, das insensatas arrumações da redenção anunciada?

Olhemos nossos lugares. Talvez, insistentes ao nosso olhar, possam nos falar. De suas origens, contar de suas incompletas historias, dizer das inúmeras vidas que circularam em seus pedaços, de seus ruídos e cheiros impertinentes, dos que foram, dos que restam ainda em partes, desmembrados mas persistentes.
Ouçamos seus casos. Dispersos, de eventos felizes e tristes, de chegadas e partidas, romances de amores e dores. Felizes e tristes momentos únicos, de encontros e desencontros.
As suas faces, revoltas, as suas marcas, as suas tintas, as folhas das arvores que de ano em ano ocuparam as calcadas, encheram seus jardins e caminhos.
Os seus telhados, complacentes, feitos de escuras telhas empoeiradas  pela areia, pelo medo, retidos seus destinos indesejados pela cobertura, protetora e guardiã.
Então.


kleber frizzera