quinta-feira, 14 de março de 2024

A porta fechou


Entreaberta a porta, toquei de leve a campainha, que mal sussurrou o seu despertar, bing bong, refletida em vazio nas paredes do apartamento, algo normal, de falta repetida e da ausência, quando sua voz surda apagava o destino.

A luz da manhã fazia um trilho de poeira que se depositava sobre o tapete de sisal, marcado de pés, cerveja e cigarros e rompia o silêncio das coisas, lentamente dissolvendo as ultimas falas e gozos abandonados no ar.

A cama permanecia desfeita de outros encontros, o lençol lançado ao chão, os travesseiros amassados, a luz acesa do banheiro refletida no espelho rachado de tantos sonhos de olhar. 

Havia também uma cozinha, escura, de copos sujos, restos de comida e panos de prato falando de amor e sexo.

Lá fora, carros acelerados atropelavam a rua estreita, porteiros de porta em porta, na esquina, em longos fileiras, toma-se café e pão com manteiga encostados ao balcão de mármore. 

Se olharmos em profundidade, esticando o pescoço na janela, o mar acontece no final da rua, em Copacabana.

Nada mais restava, fechei a porta e fui embora.

2024

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Lisboa revisitada











Lisboa revisitada 


Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Mário de Sá-Carneiro


Após sete anos retorno a Lisboa para uma curta visita. 

O tempo ameno convida caminhadas na cidade de tantas colinas, de tantos miradouros, de tantas vistas extraídas do rio Tejo e das casas que se estendem agrupadas, refletindo o sol e os ventos marítimos.

Reconheço e me surpreendo com os lugares que já passei, admiro novamente quietas ruas e acelerados turistas, aprecio restaurados casarões e ainda me estranho com vazios vãos em ruínas eternas. 

Em uma cidade de tantos tempos e cuidados, de superpostos eventos, em abril faz cinquenta anos da revolução dos cravos, que afastou a sombra da ditadura salazarista, de suas glórias encerradas e guerras coloniais, de famílias decadentes e amores impossíveis.

Tudo muda e nada muda na cidade dos sonhos. 

O bonde repete estridente, nas ladeiras, as suas carreiras, tocam nas horas certas os sinos da igrejas, e na urbanização pombalina, de ortogonais desfechos, uma multidão circula na rua Augusta e desembarca na Praça do Comércio, aliás Terreiro do Paço. 

O sol continua se pondo em fogo, às tardes, na foz do rio, o cheiro do peixe ocupa os becos e vielas e as antigas retrosarias, na baixa, lentamente vão se extinguindo, entre linhas, fitas, agulhas e carreteis. 

Ponto a ponto.

Na minha janela, vejo a igreja de são Roque que abriga relíquias de santas virgens, acomodadas em camadas de pequenos bustos e brilhantes dourados altares enunciam a fala profética do evangelista João e jubila os santos jesuítas, mártires missionários das viagens ao Oriente.

Uma dúvida me estende. 

Lisboa dos romanos, Lisboa do império navegante, do terremoto, Lisboa da tristeza romântica de jovens poetas e escritores, da praça do regicídio e da república sequestrada pela ditadura melancólica, que tentou opor a cristandade, fado, Fátima e futebol às modernidades profanas. 

A tempo, meio século depois, Lisboa fez valer noites festivas no Chiado, músicas jovens no Bairro Alto, o fado encantado na Alfama, o gosto do vinho, da ginjinha e dos pasteis de bacalhau, expõem as diversidades e os conflitos humanos nas multidão das faces de sua população.

Em partes, receosa e pacata, país e cidade ouviram o mundo à beira do rio, onde fluem barcos e museus, onde o cais recebe brancos navios de cruzeiro e se desenhou seguidos caminhos, do parque das Nações `a Belém e ao Mosteiro dos Jerônimos. E logo após, Cascais.

Movimentam, passo a passo, o rio ao mar, o corpo que se distende em longos passeios e olhares ao infinito restaurado, sem mais desejos e ilusões diante das dimensões e dores do planeta.

Museus dos coches, dos azulejos, dos desafios da arte, pontuam e alertam aos moradores e aos viajantes navegantes ocasionais, informam das naus de conquista e de comércio que venceram a barra, que invadiram oceanos, acamparam em sonhos de riqueza ao Brasil, `a África e ao extremo oriente.

Hoje, somos nós, brasileiros, que abandonamos a pátria, jovens e maduros casais, somos nós que espremidos em apertadas aeronaves, caravelas modernas, enchemos malas de expectativas e ambições, dobrando de volta `a Portugal, pelos ares, ao singrado Atlântico. 

Submergido em acumuladas estímulos e experiencias, desloco-me lentamente, deixando que, letra a letra, imagem a imagem, que a cidade me ocupe o corpo e o espirito, me conduza e me sabe em sabor, ruídos, cheiros, gostos e olhares, me apresente um mundo possível de encontros e felicidade.

Kleber Frizzera

Lisboa

terça-feira, 6 de junho de 2023

ser

seR

 

olhos e cabelos negros, 

abro a porta,

revelam,

contra a luz do corredor, 

o jeito que faz valer o mundo, 

reservado.

 

no poço escuro, 

o gosto antecipado,

noite ainda, o dia depois, 

o corredor e o colchão sobre o chão. 

 

a luz já não encanta, não imanta

o tempo e os gestos em vão, tão 

solitários como antigamente.

 

 

kleber 

janeiro 2022

monte

o monte, o céu

anuncia ao profeta, o mandamento,

ao poeta, a paisagem,

ao guerreiro, a posição,

ao amor, as estrelas.


na ascensão, ossos e músculos anotam o esforço,

de olho na chegada, adiada, 

ao tempo transferido,


cada jeito, cada preito, cada desfeita, aproxima o final…


Kleber