Nada em comum Graça, feliz ... Clarão demasiado humano para o ímpio
Selvagem, empedernido,
rugiente
Bramido de um sol desnudo
Giuseppe Ungaretti
Qual o propósito da vida humana, deste jeito de se agregar em vilas e cidades, acumular edifícios,
paredes e muralhas para conter os bárbaros inimigos?
De que serve o acúmulo de
bens, de honrarias e poderes, extravagantes adereços, inusitados brindes,
múltiplas identidades e concentrados capitais?
Guerras e posições disputam no
dia a dia provisórios prazeres, recursos finitos, enfrentam medos, modas e
gostos temporários, ilusões.
Sujeitos ao plano divino, de queda e redenção,
condenados ao desígnio da morte, à fragilidade dos afetos e sabores do mundo,
fúteis motivos da sobrevivência, projetos de futuro acionam corpos e mentes,
aguardam amores e salvação.
Ao lado, a metrópole se desfalece em incompletos
brilhos, em esforços vazios, em falas incompreensíveis, movimenta erráticos
movimentos e sentidos dispersos.
Será só isto, o cochilo no ônibus, a cerveja
quente, a árvore de Natal, o peru no forno, os papéis jogados no chão, esgotado
o ano, outro se anuncia de forma igual?
Além do horizonte, existe um lugar, onde
somente acessam os navios e os sonhos, onde crianças e jovens movimentam seus
desejos e esperanças.
Uma cidade de cristal esmeralda, um caminho arco íris ao
palácio, onde o mago aguarda a tropa de infelizes, incompletos e deficientes
personagens. Ausências de falas e corações, são frágeis corpos, buscam agregar
uma ordem possível, aos inimigos se opõem uma inventada tradição. Retorna o
herói à casa, protege a joia, fecha as janelas e portas, acende as luzes, a
missão cumprida, enfim.
Mas, não há alimento comum e na chegada troféus não
erguem foguetes e vivas, não conseguem derrotar a solidão e o desfazer do tempo.
Cinzas se acumulam, na lareira, o fogo, faíscas e calor, não aproximam, não
contém, não impressionam. Recém-chegados, nômades ocupam vazios lugares,
incomodam, suas cores, cheiros e gritos, imaginam tambores vibrantes, ou
deixam-se ficar abandonados em sujas calçadas, madrugadas frias e chuvas de
dezembro.
O que ordena, o que faz sentido, correspondências e afinidades, na
quase metrópole, entre seus resíduos de fracassos e sucessos?
Dois imediatos
caminhos: recuperar a unidade perdida, imaginada religião ou desejos pagãos de
sagradas tramas, que aproximam os diferentes opostos ou então buscar minerar dos
solos e artifícios, as marcas originais das identidades negadas, os vestígios
dos felizes anteriores.
Dois caminhos opostos, divergentes ou encruzilhadas
futuras?
Na minha cidade, na colina, escuto `a noite, ruídos. Ruídos das
inconstantes marés, dos bares jovens, do caminhão do lixo, os latidos de
cachorros e de manhã, se atento, alguns pássaros e o sol acendendo o céu.
Imagino que abertas as cortinas, milhares de janelas acordam expectativas.
Trabalhos, viagens, ensino. Nos armários, convivem calças, saias e camisas,
cores e fantasias, espreitam sofrimentos e alegrias, monótonas práticas e
inúteis gestos.
Como uma essência “a ser lembrada com nostalgia ou um destino
prefigurado”, escreve Roberto Esposito, o nosso comum, (para comunitarismos e
comunismos), é descrito normalmente como “aquilo que une uma única identidade a
propriedade- étnica, territorial, espiritual- de cada um dos seus membros”.
Discorda o autor, a communitas partilha “não uma propriedade ou um
pertencimento” Para ele, “não é ter, mas ao contrário, um débito, um penhor, um
dom a ser dado. É aquilo que está por vir a ser, e virtualmente já e’ uma
falta”, que constitui o impróprio comum.
Conclui Esposito, “o comum não é
caracterizado pelo próprio, mas pelo improprio, ou mais drasticamente, pelo
outro”, forçando o sujeito a escapar de si mesmo. Ao entrar em contato com
aquilo que é, “a mais arriscada das ameaças”, o sujeito se expõe ao conflito com
o vizinho,”`a perda dos limites, que conferem identidade e asseguram sua
subsistência”.
Unidos pela fortuna, pela sorte ou acaso, pelo medo do outro, faz
Hobbes ler no fundo obscuro da comunidade, “dentro de si um dom da morte” .
Kleber Frizzera Dezembro 2022