Redenção
Maio 2012/ revisão 1
Acabado
o prazo de validade, no limite ultimo da finitude material e humana, nas nossas
cidades e vilas, edifícios e lugares tentam se manter vivos, escorados de pé,
ameaçados pelos múltiplos desejos de novos projetos e construções, fragilizados
diante dos inexoráveis pesos e forcas do destino.
Suportaremos
os seus tristes fins, seus lentos desgastes e desmoronamentos, verteremos
furtivas lágrimas sobre suas pedras e ruínas, e encerrados os atos expiatórios,
perderemos definitivamente suas memórias e passados?
Deixaremos
nos levar, como o rio que nunca mais retorna, de agua e fluxo, ao mesmo ponto e
margem, rio que nunca mais passara’ sob os arcos da mesma ponte de pedra, ou
quando retesado o braço, tentaremos o arco ao tempo, lançada a flecha apontada
contra os fragmentos entulhados ocupados ao denso olhar.
Circulamos
, então, aliviados, com prazeres melancólicos nas suas ruas e becos históricos,
aspirando, casa após casa, o doce odor das trepadeiras e glicínias do acontecimento
e da salvação, debruçadas seus galhos e espinhos no profundo recorte do rio.
Patrimonio
histórico.
Invenção
nacionalista a definir, selecionar tempos e lugares excepcionais, estes doces
momentos únicos, de origem e inicio, de começo da vida e das identidades
regionais, repetidas, divulgadas, enaltecidas, a suportar atuais projetos,
imposições autoritárias e ordens derivadas.
Cada
uma em seu quadrado, cada um em sua etnia, aspirando solitário o seu gosto
pessoal ou posição.
Em
sua ordem. Qualquer que seja.
Especialistas
e pesquisadores preparam, minuciosamente, inventários, listas, anotam registros
em profusão, produzem livros, fotos, desenhos, imagens comparadas, lado a lado,
nomeando estilos, inventando fases, descobrindo influencias uns de outros,
vindo de alem mar ou do mais próximo gesto manual. Natural.
Falas
eloquentes, sagazes, encaminham `a observação publica uma serie de elaborados
brasões e frontões, feitos de estuque ou de mármore cinzelados, escondidos no
alto das construções, definindo seus recortes e marcas de outras épocas, seus
abandonados valores, perdidas as fontes simbólicas de suas primeiras ilusões.
Governantes
se aproximam, cautelosos a principio, mas rapidamente nomeiam amáveis tão belas figuras e imagens,
apropriando-se de suas identidades, restauradas sem riscos, para de suas
origens ( pretensas) imaculadas, unificar e agregar disputas
inconciliáveis. Viram leis, geram
alentados regulamentos e burocratas mis, viram leis e pecados, viram certos e
errados, se transformam em vida e morte.
Mas
não se recordam, esquecem como o anjo, de asas contra o vento da tempestade,
das catástrofes e guerras, das violências originais, contra o índio, o escravo,
contra o meeiro, o trabalhador.
Não
se lembram das perdas deixadas, abandonadas pelo chão, enterradas os seus
pedaços, fragmentos e partes deslocadas, afastadas de seus museus, de suas
historias, escondidos os projetos esclarecidos desperdiçados, os sonhos
desfeitos, as vontades estilhaçadas pela dor e pelo isolamento, deixada,
imposta a província a sina de esconder suas penas em medíocres escrevinhadores
e gazetas.
Sobram
para este esquecimento as marcas duras nos corpos, da chibata e do trabalho
escravo, da repetição sem fim do esforço inútil, repetido, sem fim.
Sobram,
escondidas, as marcas do poder e da humilhação.
Sobram
na pele, as cicatrizes, e na boca, o gosto amargo de fel.
Sobram
historias de mãe para filha, de pai para a criança que se lança, jovem
temeroso, nas ruas na busca da
sobrevivência, sobram as conversas de companheiros, de vizinhos da dor e da
exploração, mas também colegas da alegria e da expectativa.
Sobram
desejos, expectativas de reparação e redenção.
Como
os homens, as construções são efémeras, finitas. Amargam com o tempo,
cicatrizes e dores, se tornam velhas e infelizes, apagadas, mortiças em seus
cantos. Se abandonadas, se tornam imprestáveis, inúteis, marcando em rugas e
riscos suas faces, e se deixadas `a luz e `a chuva, vão se embotando, pálidas
ate’ que uma forca maior, natural ou artificial derrube suas partes e
estruturas deixando apenas finos resíduos e partes sobre o solo. Com mais
tempo, apenas poeira, restos de pedras enfrentam os séculos, os ventos e
tempestades, e ao visitante desatento, a vida se apresenta decaída sem começos,
sem interesses ou fins. Acabam seus sentidos e afetos como os homens, suas
ordens e civilizações..
Ansiosas
logo mais aparecem outras ordens a confundir, se apresentam outros monturos a
acumular.
“Não venho para esclarecer, venho para
confundir.”
Como
a arte, o amor e o ódio, como a
arte e a ciência.
Mas
permanecem, ou não, os símbolos imemoriais. Descobertos em espírito e soterradas em matéria
degradada, registrados em contos, em cadernos e desenhos de viajantes e
naturalistas europeus perdidos em selvas e desertos, recolhidos sob a mata e a
areia, esquecidos seus moradores e construtores primeiros.
Portas
e janelas, paredes e portais, vãos e opacos muros a limitar lugares e a
direcionar vistas e visões, pisos e cobertas protetoras, seus cheiros
permanecem, suados, de barro e tijolo, essências de pedra e cal, de madeira e
duras ferragens. Estruturas.
Mas
que fazer deste peso morto?
Como
se livrar deste cadáver insepulto que obstrui as ruas e quarteirões, desta
massa disforme, sepulcral, despida
de seus sentidos, onde habitam espíritos e fantasmas.
Outros
movimentos, mais agressivos se enfrentam na cidade. Violentos veículos buscam
acelerar o a velocidade das vias, mas mesmo potencializados, motores e
maquinas, se deparam com mais e mais personagens, mais e mais obstáculos,
conflitos a impedir que se rompam as barreiras.
Cabe
guardar então os nossos mortos?
Ou
deixa-los aparecer, fantasmas como uma reserva contra o insensível capital,
como uma parede frágil `a avalanche global?
“ e uma cruel desilusão, foi tudo que ficou, ficou,
para machucar o meu coração”.
Preservar
o mundo das ruínas contra o mal maior.
Que
nos aguardara’ ?
Qual
o futuro que brilha, ansioso a sua aparicao?
Qual
linha dos seus limites, de sua finitude, da incerteza de suas partes e
totalidades?
Pensar
uma possível aliança, agregar mortos e vivos somando as suas pedras, corpos e
diversas formas, perdas e ganhos, e assim darão juntos conta dos desejos
insatisfeitos, prestarão juntos conta das promessas incumpridas, das insensatas
arrumações da redenção anunciada?
Olhemos
nossos lugares. Talvez, insistentes ao nosso olhar, possam nos falar. De suas
origens, contar de suas incompletas historias, dizer das inúmeras vidas que
circularam em seus pedaços, de seus ruídos e cheiros impertinentes, dos que
foram, dos que restam ainda em partes, desmembrados mas persistentes.
Ouçamos
seus casos. Dispersos, de eventos felizes e tristes, de chegadas e partidas,
romances de amores e dores. Felizes e tristes momentos únicos, de encontros e
desencontros.
As
suas faces, revoltas, as suas marcas, as suas tintas, as folhas das arvores que
de ano em ano ocuparam as calcadas, encheram seus jardins e caminhos.
Os
seus telhados, complacentes, feitos de escuras telhas empoeiradas pela areia, pelo medo, retidos seus
destinos indesejados pela cobertura, protetora e guardiã.
Então.
kleber frizzera